O tratamento das hérnias da região ínguino-crural tem sido uma área de controvérsia na prática cirúrgica desde o momento em que foi concebido. Embora o procedimento seja considerado seguro e relativamente simples, com resultados satisfatórios, os pacientes podem experimentar uma recuperação pós-operatória prolongada, com atraso no retorno às atividades laborais e recorrência. Assim, as hérnias da região ínguino-crural não só afetam o paciente individualmente, mas também têm grande relevância socioeconômica, com um taxa de recorrência de 5 a 10% e um custo superior a 28 bilhões de dólares nos Estados Unidos conforme dados do National Center for Health Statistics. O tratamento cirúrgico de hérnias na região ínguino-crural é o procedimento mais freqüentemente efetuado por cirurgiões gerais nos EUA. Nesse país, aproximadamente 700 mil cirurgias são realizadas anualmente, perfazendo 15% de todas as cirurgias. Vinte milhões de reparos são realizados anualmente em todo o mundo.
Os dados no Brasil não são tão bem conhecidos. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), aproximadamente 5,4 milhões de pessoas sofrem de hérnia no Brasil. Hérnias da parede abdominal foram responsáveis por cerca de 500 mil cirurgias realizadas entre 1993 e 1996 pelos cirurgiões gerais do Sistema Único de Saúde (SUS), ocupando o segundo lugar entre os procedimentos efetivados, custando aos cofres públicos cerca de 100 milhões de reais naquela ocasião. Devemos salientar que no Brasil, conforme dados da Pesquisa Nacional de Saúde do IBGE de 2019, 28,5% dos residentes no país possuíam algum plano de saúde médico ou odontológico, totalizando 59,7 milhões de pessoas. Nas regiões Norte e Nordeste, somente 14,7% e 16,6% das pessoas tinham plano de saúde. Mesmo nas unidades da federação em que a renda per capita é mais alta, a proporção de pessoas com plano de saúde médico era inferior a 40% da população. Exemplos: São Paulo (38,4%), Distrito Federal (37,4%), Rio Grande do Sul (35,4%) e Rio de Janeiro (35%).
O grande sucesso da colecistectomia por videolaparoscopia impulsionou, a partir da década de 1990, o desenvolvimento das técnicas vídeo endoscópicas para o tratamento das hérnias da região ínguino-crural. Os reparos vídeo endoscópicos tendem a ter menos infecção, dor crônica, dormência, perda de atividade laboral e melhor qualidade de vida, vantagens muito interessantes tanto para pacientes como cirurgiões. No entanto, dados provenientes do Ministério da Saúde – Sistema de Informações Hospitalares do SUS (SIH/SUS) mostram que, no Brasil, o percentual de hernioplastias inguinais realizadas por técnica vídeo endoscópica é muito baixo. De 2008 a 2012, foram realizadas 162.008 colecistectomias por videolaparoscopia, mas apenas 3.982 hernioplastias inguinais foram realizadas por este método no período. De janeiro a outubro de 2013, 94.150 hernioplastias inguinais unilaterais e 11.858 hernioplastias inguinais bilaterais foram realizadas pelo SUS. Apenas 657 destas foram realizadas por técnicas vídeo endoscópicas. Dados mais recentes expressam uma realidade semelhante no SUS. Entre os anos de 2008 e 2015, número de hernioplastias inguinais vídeo-endoscópicas conforme região foi de:
– Região Norte: 481 de um total de 56.571 hernioplastias inguinais (0,85%).
– Região Nordeste: 690 de um total de 274.429 hernioplastias inguinais (0,25%).
– Região Sudeste 1.190 de um total de 325.503 hernioplastias inguinais (0,36%).
– Região Sul 1.468 de um total de 139.188 hernioplastias inguinais (1,05%).
– Região Centro-Oeste 351 de um total de 56.947 hernioplastias inguinais (0,61%).
Total 4.180 de um total de 852.638 hernioplastias inguinais (0,49 %).
Já no período entre 2016 e maio de 2021, encontramos os dados abaixo coletados:
– Região Norte: 121 hernioplastias inguinais vídeo-endoscópicas de um total de 34.623 hernioplastias inguinais (0,34%).
– Região Nordeste 434 hernioplastias inguinais vídeo-endoscópicas de um total de 148.522 hernioplastias inguinais (0,29%).
– Região Sudeste 1.440 hernioplastias inguinais vídeo-endoscópicas de um total de 201.250 hernioplastias inguinais (0,71%).
– Região Sul 1.343 hernioplastias inguinais vídeo-endoscópicas de um total de 87.874 hernioplastias inguinais (1,52%).
– Região Centro-Oeste 325 hernioplastias inguinais vídeo-endoscópicas de um total de 30681 hernioplastias inguinais (1,05%).
Total 3.663 hernioplastias inguinais vídeo-endoscópicas de um total de 502.950 hernioplastias inguinais (0,73%).
Ao contrário do que aconteceu com a colecistectomia por videolaparoscopia, que tem a sua utilização claramente crescente no SUS (ver artigo blog Instituto SIMUTEC “COLECISTECTOMIA VIDEOLAPAROSCÓPICA NO SUS: COMO ESTAMOS INDO?”), a porcentagem de hérnias da região ínguino-crural operadas por técnicas vídeo endoscópicas permanece mínima, não chegando a 1% dos casos totais. Sabendo que no sistema privado de saúde – saúde suplementar, a utilização de técnicas minimamente invasivas tem se estabelecido como preferenciais e considerando as suas vantagens sobre as técnicas abertas, a realidade é preocupante.
Fatores formacionais e econômicos são as principais razões dessa realidade no Brasil. As técnicas vídeo endoscópicas necessitam formação específica e possuem uma maior curva de aprendizado. Como a maior parte dos cirurgiões aprende técnicas durante o seu treinamento em programas de residência médica e como esses programas são desenvolvidos em hospitais do SUS, a quantidade de casos observados é pequena. Este fato não permite o estabelecimento de uma curva de aprendizado na técnica, o que deverá ocorrer após o término da residência, em pacientes privados e com investimentos complementares em treinamento.
Quanto à questão econômica, a análise é complexa, pois esta deve ser considerada em termos de tempo operatório, custo do equipamento e instrumental, incluindo aqueles de uso único, tempo de permanência hospitalar e afastamento das atividades normais e profissionais. Várias séries têm demonstrado que, apesar dos custos diretos serem superiores, o reparo vídeo-endoscópico parece rentável a partir de uma perspectiva social devido ao retorno precoce às atividades normais e baixa incidência ou recorrência de dor na região inguinal. Em 2005, McCormack K e colaboradores, em um estudo de custo-efetividade (McCormack K, Wake B, Perez J, et al. Laparoscopic surgery for inguinal hérnia repair: systematic review of effectiveness and economic evaluation. Health Technol Assess 2005;9(14):1–203, iii–iv), concluíram que o reparo vídeo-endoscópico tem um maior custo direto que um reparo aberto. No entanto, quando avaliados os custos sociais, tais como tempo de afastamento do trabalho, produtividade e dor crônica, os reparos vídeo endoscópicos apresentam bom custo-efetividade, em especial para a população ativa trabalhadora e hérnias bilaterais.
Durante os últimos 25 anos, o tratamento das hérnias da região ínguino-crural passou por uma evolução dramática. Claramente, a força responsável por essa mudança foi o desejo de reduzir o tempo de internação hospitalar, a incapacidade física do paciente e as taxas de recorrência. Nunca o interesse na hernioplastia inguinal foi tão intenso e isto se deve ao advento das técnicas vídeo endoscópicas que evoluíram em paralelo com a experiência e tecnologia. Neste sentido, estratégias que permitam o aumento da aplicação da hernioplastia inguinal vídeo endoscópica no tratamento das hérnias ínguino-crurais no Brasil podem trazer importantes benefícios para o indivíduo e para a sociedade, devido ao impacto significativo sobre emprego, invalidez e custos para o sistema de saúde com ênfase no SUS. No entanto, essas estratégias precisam demonstrar uma melhora palpável na assistência aos pacientes, especialmente no que tange a sua segurança, satisfação, facilidade de uso, além da relação custo-efetividade. Muitas vezes, a evolução tecnológica traz consigo um aumento de custos do procedimento. Nesse sentido, é fundamental o desenvolvimento de técnicas reprodutíveis, seguras e economicamente viáveis. Técnicas que utilizam materiais reutilizáveis, de fabricação nacional, podem determinar um custo mais acessível do procedimento e permitir que ele seja disponibilizado a um maior grupo de pacientes, inclusive àqueles do SUS.
O passado e o futuro da cirurgia da hérnia inguinal repousaram e repousam no estabelecimento de novos métodos e materiais que tem de cumprir requisitos especiais de qualidade e no treinamento dos cirurgiões em técnicas minimamente invasivas. Para manter esta qualidade é necessário ter compromisso com pesquisa, desenvolvimento e ensino, pois inovação e treinamento são o caminho para o futuro.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Censo Demográfico 1960, 1970, 1980, 1991, 2000 e 2010. Disponível em: http://www.censo2010.ibge.gov.br/sinopse/index.php?dados=8.
2. https://agenciabrasil.ebc.com.br/saude/noticia/2020-09/pesquisa-diz-que-597-milhoes-de-pessoas-tinham-plano-de-saude-em-2019.
3. Agencia Nacional de Saúde Suplementar (ANS). FOCO Saúde Suplementar. Dezembro 2012. Disponível em: URL http://www.ans.gov.br/images/stories/Materiais_para_pesquisa/Perfil_setor/Foco/20130124_foco_dezembro_web_2012.pdf.
4. DATASUS- Procedimentos hospitalares do SUS por local de internação- Brasil. Ministério da Saúde, Brasil – 2013. Disponível em: URL http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/deftohtm.exe?sih/cnv/qiuf.def
5. Nácul MP, Cavazzola LT, Loureiro Mde P, Bonin EA, Ferreira PR. Effectiveness of a reusable low-cost balloon trocar dissection device in the creation of preperitoneal space during endoscopic surgery. An experimental study in swine. Acta Cir Bras. 2015 Sep;30(9):646-53.